sexta-feira, julho 24, 2009

O Barco do Rock

"O Barco do Rock" celebra as rádios piratas que ofereceram rock'n'roll a uma nova geração. É um filme sobre os anos 1960 e a sua revolução de costumes: sexo, drogas e rock'n'roll. Realizado por Richard Curtis, tem a inocência das primeiras paixões. O Ípsilon falou com realizador e elenco em Londres.

Todos conhecemos imagens assim: miúdas aos berros puxando os cabelos, chorando de forma incontrolável e correndo, qual seita assustadora em direcção às fontes de adoração. Todos já vimos imagens de arquivo dos anos 1960 e da histeria que causava a pop. Os Beatles dentro da limousine e mãos pregadas nas janelas, caras ansiosas coladas ao vidro, uma berraria insuportável. Há uma explicação óbvia para tudo aquilo: o arranque definitivo de uma cultura juvenil e a idolatria devotada aos seus deuses, os músicos.

Manifestações de que tudo estava a mudar e a geração dos pais nunca perceberia o que estava a acontecer. No caso específico de Inglaterra, houve quem acrescentasse uma adenda a esse raciocínio. Dado que ninguém tinha muitos discos, dado que as rádios não passavam aquela música (até ao final da década de 1960, a BBC dedicava quarenta e cinco minutos por semana a rock'n'roll), o momento do concerto ou a perseguição dos músicos funcionavam como libertação de toda a adrenalina acumulada - um ritual orgástico impossível de controlar.

"O Barco do Rock", de Richard Curtis, realizador de "Notting Hill" ou "Quatro Casamentos e um Funeral" e argumentista de "Blackadder", junta um elenco onde se destacam Philip Seymour Hoffman, Bill Nighy, Kenneth Branagh ou Nick Frost e filma o momento em que essa mudança geracional se tornou irreversível. O momento, precisemos, em que os rituais orgásmicos deixaram de ser tão necessários, porque a música passou a estar disponível a todos.

"O Barco do Rock", concretizemos, eram as rádios piratas, como a Caroline ou a Radio London que, aproveitando um vazio legal, se fundeavam em águas internacionas, a alguns quilómetros da costa britânica, difundindo para a nação os Kinks, os The Who, as Supremes e o Otis Redding que a parte da nação com menos de 30 anos não ouvia até então - e da luta do Governo, tal como aconteceu na realidade, para as encerrar.

É, portanto, um filme sobre os anos 1960 e a sua revolução de costumes: sexo, drogas e rock'n'roll, filmados por um homem que associamos a comédias românticas, a filmes de bons sentimentos onde, no fim, o amor prevalece. Digamos que é "sexo, drogas e rock'n'roll", sem excessos e rebaldaria, com a inocência da primeira paixão.

Na suite do Dorchester Hotel, em Londres, onde teve lugar o "junket" de promoção ao filme, Richard Curtis, entre os dourados, madeiras nobres e motivos orientais da sala, recorda ao Ípsilon e ao grupo de jornalistas presentes como descreveu o filme aos produtores: "Será sobre oito megalómanos a viver num barco. Imaginem pegar nos oito disc-jockeys mais famosos do mundo e obrigá-los a partilhar o mesmo espaço. Explosivo".

Explosivo realmente. Vejamos. Philip Seymour Hoffman como "The Count", o DJ americano, a estrela acima de todas as outras, corrosivo como Lester Bangs. Nick Frost, ele do delirante terror brit de, por exemplo, "Sean Of The Dead", como Dave, sedutor nada discreto. Um misterioso "Thick" Kevin (Tom Brooke) de longas barbas e ar misterioso, que só ouve blues e rock progressivo ou "Simple" Simon Swafford (Chris O'Dowd), alma inocente e generosa que põe no ar os Seekers sem se aperceber da "foleirada" que isso representa. E, depois, o "jovem" Carl (Tom Sturridge), miúdo que aterra no barco como punição por ter sido suspenso na escola e que se tornará o centro do filme (a experiência, bem ao estilo de Richard Curtis, será o seu ritual de passagem à idade adulta). Pelo meio, há uma cozinheira lésbica, as raparigas que visitam os piratas no barco - a parte do sexo e das drogas - e há, inevitavelmente, Gavin. Interpretado por Rhys Ifans, é o dandy, o rocker cool, aquele que o actor nos define de uma forma peculiar: "os outros DJs difundem para a nação, o Gavin fica a apreciar o tom grave da sua voz e sussura ao ouvido das adolescentes". Ifans é quase indistinguível da personagem que interpreta.

Entra na suite para a entrevista e, antes de tudo o mais, acende um cigarro (proibido, claro está). Lança piadas sem esboçar um sorriso - coisas como "se alguém me dissesse há dez anos que entraria num filme, vestindo um chapéu com uma pena, e que a minha primeira cena seria ao som de 'Jumping Jack Flash', morreria de tesão". Rhys, o Spike de "Notting Hill", sotaque galês cerrado, é o rock'n'roller deste elenco. Literalmente - é amigo pessoal de Noel Gallagher e vocalista dos galeses The Peth. Presenteia-nos com analogias reveladoras: "Os Beatles são música para te apaixonares, os Stones são música para foder, The Who são música para lutar e os Led Zeppelin seriam a música para uma invasão de Marte".


Dois mundos em confronto

Todas as personagens que convivem no barco, alimentadas a música e isoladas do mundo real em terra, representam a "swinging London", tudo aquilo que estava a mudar na Inglaterra da década de 1960 (a acção decorre em 1966). Um momento definidor, acentuam-nos aqueles que viveram a época. Richard Curtis há-de recordar "um choque de culturas tão ofensivo que o governo de Margaret Thatcher foi, de facto, uma tentativa de voltar a 1957, antes de todas aquelas pessoas horríveis começarem a tocar o 'Hey Jude'".

Bill Nighy, por sua vez, confessará que é actor por causa do rock'n'roll: "Queria ser parte daquilo, parte de um mundo criativo. Como não sei tocar guitarra e não canto muito bem..." Nighy só o confessa depois de um longo discurso de desmistificação. Retoricamente, pergunta onde se vivia o amor livre, que não deu por isso. Diz que a Swinging London não eram mais que quatro centenas de pessoas ("o resto do país estava a trabalhar"). Troça das calças aterradoras, da muito má pintura, das drogas que deixavam as pessoas tão paranóicas então quanto hoje. Fechado o parêntesis, pode então dizer que sim, "houve uma explosão de música que foi inédita, que nunca acontecerá novamente e que mudou realmente as pessoas". Exemplo: conjectura que Quentin, a sua personagem, "teria lutado na II Guerra Mundial, provavelmente como aviador da Royal Air Force". Alguns anos depois, ali estaria, comandante de um barco pirata a lançar soul e rock'n'roll sobre Inglaterra. "Passou de usar um uniforme na II Guerra para vestir cornucópias e meias lilás enquanto dirigia uma estação de rádio. Algo mudara, forçosamente".

"O Barco do Rock" conta, de forma quase cartoonesca, qual sequência de sketches sem início e fim definidos (Curtis aponta como referências "A República dos Cucos", de John Landis, e "MASH", de Robert Altman), como dois mundos se confrontam. O novo, transmitindo do barco para a juventude da nação - toda a juventude: operários a ouvir os The Who, raparigas brancas e raparigas negras a ouvir as Supremes, miúdos do colégio a dançar ao som dos Stones e crianças em pijama, rádio a pilhas escondido debaixo da almofada, a sintonizar a frequência proibida, exactamente como Richard Curtis e Kenneth Brannagh nos contam ter feito há 40 anos).

Paralelamente a isso, o velho mundo. Cinzento e destituído de humor, paranóico e receoso de que a civilização, tal como a conheciam, desaparecesse sob o ruído de uma guitarra eléctrica. É representado por Brannagh, que interpreta Sir Alastair Dormandy, o ministro determinado a encerrar a Radio Rock e recuperar os pilares de uma "outrora grande nação".

Brannagh, um dos mais respeitados actores britânicos, fala com os jornalistas a um passo de encarnar a personagem. Começa por contextualizar: "[naquela altura] as grandes potências eram a União Soviética e os Estados Unidos. A Inglaterra tinha perdido o Império, tinha entregue a Índia. Estava tudo a desmoronar-se". A voz altera-se, surge Dormandy: "Tudo o que tínhamos era a habilidade para impedir as pessoas de se divertirem, e não iríamos abdicar disso!" Aquele contraste entre os dois universos, central em "O Barco do Rock", tornou-se ainda mais evidente pela forma como Curtis idealizou o filme. As cenas com Dormandy são feitas de planos estáticos, cuidadosamente encenadas. No barco, tudo é movimento. Ao conversar com realizador e actores, percebe-se porquê. Richard Curtis: "Tentámos criar um elo genuíno entre toda a gente. Vivemos no barco durante quatro dias, em condições horríveis, com muitas velas acesas para esconder o cheiro a 'goulash', e tínhamos acordado que todos estariam 'em personagem' a toda a hora".

Tim Sturridge: "No filme, quando entro na cabine de DJ e me encontro pela primeira vez com 'The Count', entrego-lhe um chá, ele abraça-me e dá-me uma palmada no rabo. Isso foi, literalmente, quando conheci Philip Seymour Hoffman, que chegou mais tarde à rodagem. O meu sorriso no final é genuíno, é a minha felicidade por ter contracenado com ele". Segundo Sturridge, o único verdadeiro protagonista do filme, omnipresente, é a música que ouvimos. Em 1966, as principais rádios pirata foram encerradas e os seus DJs, como John Peel ou Kenny Everett, contratados pela BBC para fundar a Radio One. A marginalidade foi absorvida e todos passaram a poder ouvir a música "proscrita".

Em "O Barco Do Rock" há cenas à Titanic, DJs nadando para salvar um LP especial, tripulação que dança, rock'n'roll bem alto no alto mar. Acaba tudo bem - e escrevê-lo, neste caso específico, não configura certamente "crime" de spoiler.





(In)confidência: Adorei este filme!!!
Com o patrocio do Myguide.

2 comentários:

Ana Lúcia disse...

Bem, grande testamento! Vi-me grega para ler isto tudo LLOOLL

Marta da Cunha e Castro disse...

Mas se gostaste, vai ver o filme. A sério, é realmente muito bom!! =)