terça-feira, novembro 15, 2011

Decisão racional: deixar de usar o transporte público


Uma família em que recebe 1.500 euros cada um. São, portanto, de classe média. Nem ricos, nem pobres. Têm dois filhos dependentes. Não vivem com desafogo mas, na miserável média nacional, são "privilegiados". Os dois filhos andam na escola.

Vamos esquecer que lhes aumentaram o IVA em quase todas as compras que fazem. Que um deles é funcionário público e perdeu, nos próximos anos, o 13º mês e o subsídio de férias que servia para compor o orçamento familiar. Que lhes aumentaram o IMI, que os juros ao banco para pagar a casa também estão mais altos. Que lhes congelaram os salários. Que comprar casa é agora uma impossibilidade e que têm de contar com os filhos a viverem em casa deles muito para lá do que seria saudável, porque não vão arranjar emprego minimamente seguro para assumirem qualquer compromisso nem ter outro lado onde viver. Vamos esquecer tudo isto. Vamos até imaginar que não estão com a corda na garganta.

Os filhos vão sozinhos para a escola. De transportes públicos, tal como os pais que, conscienciosos e poupados, não tiram o carro da sua rua nos dias de semana. É bom para a autonomia dos filhos, para a carteira dos pais e para a cidade, que assim tem menos carros a circular. É até bom para a economia, que gasta menos a importar combustível. O preço dos transportes públicos aumentou, o que fez os pais repensarem se valeria a pena continuar a fazer isto. Mas o passe social dos miúdos ainda compensa. Esta semana, ficaram a saber que o passe social dos seus filhos aumentará para o dobro. Porque são ricos. Isto de serem "ricos", com dois salários de 1.500 euros, tem sido um desastre. Nos impostos, nos serviços públicos, em tudo.

Os pais fizeram as contas. Com os transportes públicos caros e sem passe social para os filhos, a despesa é incomportável. Sai mais barato irem todos no carro. Levarem e trazerem os filhos à escola. Têm lhes explicado, na televisão (jornais já não podem comprar), que é uma questão de justiça social. Eles não são pobres e o Estado a quem eles entregam uma parte significativa dos seus salários é para pobres (e para os bancos). Isto apesar de saberem que os pobres viram as suas prestações sociais reduzidas e os bancos, pelo contrário, podem sempre contar com dinheiros públicos. Mas adiante. Eles tomam a decisão economicamente racional de deixar de usar os transportes coletivos. Eles e os remediados que ainda optavam por eles. Mais uns milhares de carros na cidade. A poluírem. A engarrafarem o tráfego. A levarem, com o tempo e a energia que se perde, a uma redução da produtividade. A fazerem perder tempo. A obrigarem a importar mais combustível e a piorarem a nossa balança comercial. A degradarem as vias públicas, obrigando a maior investimento do Estado em manutenção. A encherem passeios, porque não há lugar para estacionar.

Vamos fingir que esta família é rica. Vamos fingir que não paga impostos e que por isso não tem, como os outros, direito a algum retorno do que paga. Vamos fingir que esse País estranho de que nos falam economistas, governantes e comentadores existe mesmo e esta gente vive desafogada. Mesmo assim, as coisas são simples para esta família: vai voltar ao carro que o começo da crise, numa das poucas coisas boas que parecia ter trazido, os tinha feito abandonar no seu quotidiano. Com menos gente, os transportes públicos, que são tanto mais sustentáveis quanto mais gente os usar, são cada vez mais difíceis de manter. Cada vez mais caros. Cada vez mais escassos.

Os discursos sobre a justiça social, para enganar papalvos e tentar que os pobres se convençam que a destruição dos serviços públicos é feita em seu beneficio, valem de pouco para esta família. Tomam a decisão racional e pegam no carro todos os dias (assim como a razão que levou a classe média a comprar casas em vez de as alugar, contribuindo para o endividamento do País, foi a mais pura das racionalidades: era mais barato). Ficamos todos a perder. Mas ficam contentes os propagandistas do regime. E o secretário de Estado dos Transportes, que acha que transportes públicos acessíveis e com apoios públicos são apenas para "quem não tem alternativa de mobilidade" (ou seja, para quem não pode andar de carro), também. Nada como ter governantes e "ideólogos" de governantes com uma cabeça subdesenvolvida para fazer o nosso país regressar ao Terceiro Mundo. Com uma economia irracional, cidades caóticas e atrasado em quase tudo. Seremos mais competitivo assim? Eles acham que sim.

Eu, seguramente um alien nesta terra enlouquecida, acho que uma das formas de medir o desenvolvimento e a racionalidade económica de um País é ver a qualidade dos seus transportes públicos e a quantidade e a variedade social das pessoas que os utilizam. E que parece que não aprendemos nada sobre algumas das razões do nosso atraso, que nos tornou mais vulneráveis a esta crise. Que olhamos para este país coberto de autoestradas e quase sem linhas férreas e depois ouvimos um secretário de Estado falar do transporte público como um complemento ao transporte individual e percebemos porque estamos como estamos. Estamos atrasados porque somos governados por cabeças atrasadas. Quanto tínhamos dinheiro, apostaram tudo no carro. Quando falta o dinheiro, cortam tudo no transporte público. Com ou sem dinheiro, a receita é sempre a mesma.


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