segunda-feira, setembro 14, 2015

A mulher que vivia no futuro

Os amigos riam alto naquela esquina da Av. dos Combatentes com a Elias Garcia. O último cigarro depois das cervejas e antes de se despedirem e se separarem indo cada um para a sua casa prolongou-se para uma conversa séria. Todos tinham reparado na serena tristeza de um deles, que se tinha tornado crónica. Porquê, estar no café a rir com os outros, sempre afável e amigo do seu amigo, partilhando das alegrias e sucessos dos outros mas nunca alegre pelos seus próprios sucessos? Quando os tinha, raramente compartilhava com os amigos. Não por achar que estes eram pouco merecedores, mas porque não os encarava como sucessos. Estava incompleto, dizia ele. "Não sou eu todo agora, estou um pouco noutro lado qualquer". Lá estava ele a falar de gajas: "calma, quando menos esperares elas aparecem, o que não falta aí são gajas"
Talvez, mas o que completa alguém não é tão aleatório. Se tenho agora, em 1994, vinte anos, a minha divisão de alma pode ter 10 anos ainda, noutro canto deste mundo. Ou deste país, espero eu.
"E até lá? Sabes lá tu se isso existe, isso da alma gémea?"
"Se não existe, eu espero à mesma. Ficar incompleto, pode-se ficar para sempre, mesmo se acompanhado. Basta estar acompanhado pela pessoa errada." "Sabes reconhecê-la, se a vires?"
"Como não reconhecer aquilo que o universo atravessa no teu caminho? É uma força incontornável. O problema é o tempo, quando, quando? O meu medo é que esteja noutro plano, universalmente paralelo a mim, em que só a vou encontrar com vida feita, vida construída para mim, embora não POR mim. Vida feita de remendo, para colmatar faltas. Imaginem vocês que a encontro, mais tarde, desiludida, porque o seu lugar era comigo neste tempo, e passou por várias pessoas no tempo dela, também à minha procura, como duas pessoas numa comédia de portas. Dois corredores paralelos onde ambos andam para a frente e para trás, garantindo que viram em cada recanto, esquecendo-se que o universo colocou outro corredor lá atrás." "E ela?"
"Ela é linda. Não me pertence, pois ela já é a minha dona. Não a tenho, porque ela já me teve logo à nascença como prenda universal, mesmo não sendo eu grande coisa, ela é assim dona de dois destinos. O dela e o meu."
"E a diferença de tempos?"
"Não importa. Por isso é que vocês próprios me têm aqui, amigo, leal, embora pela metade. Porque a outra metade já lá está, na cabeça dela, tornando-a aventureira, exploradora, de uma quimera que apenas o seu coração vai poder encontrar, quebrando barreiras de espaço e tempo: eu. Na verdade, nem sei bem se me despeça de vocês. Porque já parti há algum tempo."

MB em 1994. MC em 2015.

MB

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