terça-feira, setembro 15, 2015

O Rapaz do Presente

Ele corria desenfreadamente pela rua, de calções. Tudo se conjugava para o desastre. Bastava uma pedra da calçada mal colocada e... ali estava ela. Mesmo na esquina. O pé de apoio falha, a gravidade impiedosa actua e o rapaz de mais ou menos 10 anos cai desamparadamente no passeio. Foi mais o aparato do que o dano, um joelho esfolado e as duas palmas das mãos vermelhas do impacto. Tinha herdado os reflexos da mãe, felizmente. Enquanto se levanta e avalia os danos, responde a uma velhota que o conhecia garantindo-lhe que estava tudo bem. "Cuidado, filho. E atenção à estrada, aqui na Elias Garcia o trânsito vem de cima, da esquerda. Hum... Vinhas a olhar para a padaria, aposto... Com bolos na cabeça e uma distracção e está o serviço feito". Sorriu. Apenas sorriu para a senhora, com a delicadeza que o caracterizava fruto da educação e muito amor que tinha em casa, amor de ambos. Do pai, da mãe e dos pais um pelo outro, amor que transbordava e inundava o lar que tomava por isso esse mesmo nome, um lar. E não apenas uma casa. Ele sorria muito, libertava assim a alegria extrema de viver com a serenidade de saber que existia. Por vontade. Não por acidente, mas por muita vontade. Sorria muito, porque sabia porque estava ali, porque pertencia ali por direito, à rua e à vida. Era dono do seu tempo, do seu presente, estava no tempo certo por uma razão de existir. Os seus pais tinham lutado muito por ele, pela sua existência. Porque para ele existir os pais tiveram de se encontrar primeiro, tiveram de correr contra os tempos, de se encontrar, de se achar, lutar contra o próprio tempo para saber se o outro iria estar no sitio certo quando o primeiro lá chegasse anos depois. Lutaram muito para ter a certeza de que aquela procura era real, de que o achado existia e de que no final tinham o prémio de um encontro. Ele lembrava-se desta história, desta rua. Elias Garcia. Onde o seu pai em conversa com amigos pedira pela primeira vez em pensamento namoro à sua mãe, que haveria de conhecer com 10 anos de diferença. Ali ele reconheceu a sua própria existência. E sorriu. Um sorriso de confiança, de certeza. A incerteza do desencontro dos pais baralhou-se com a certeza das suas existências mútuas e resultou numa felicidade confiante de 10 anos. Sorriu de novo, antes de arrancar mais uma vez a correr.

MB

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